quarta-feira, 14 de novembro de 2012

CONTOS DO MUNIR 99


FRAGMENTOS   2

Lu – seu vestido está molhado, você pode ficar resfriada.
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Pedro e Luiza, 12 e 10, estavam agora no porão da casa de Pedro.
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De férias, na manhã de uma quinta-feira de verão, vinham de mais uma travessura compartilhada. Dessa vez por iniciativa dela, que havia sugerido a incursão na área de seu Antonio, dono das casas onde moravam.
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O comércio dele era o mercado de flores. A chácara era enorme, praticamente do tamanho do quarteirão. Limitada por muros dos fundos das casas alugadas, de sua propriedade, na Rua Barão de Itapagipe e de outras na Rua Hadock Lobo.
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Um enorme tanque, mais parecido com uma piscina, era usado pelo jardineiro para molhar as plantas. Fazia isso pouco depois do nascer do sol e ao cair da tarde.
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O dia, realmente, convidava ao passeio por entre as flores: rosas de diversas cores, cravos, lírios, margaridas, copos de leite, antúrios, gardênias, estrelícias e outras mais além da chuva de prata para o adorno dos arranjos, exalavam uma mescla de aromas perfumados. Transformavam a pintura em um quadro tridimensional.
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Luiza e Pedro se sentiam no paraíso, receosos, todavia, que seu João, o cuidador, aparecesse fora de seu horário habitual.
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Fazia calor.

-Pedro, vigia enquanto eu tomo um banho no tanque.
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Haviam pulado o muro de volta.
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-Lu, melhor por esse vestido pra secar, o que sua mãe vai dizer se você chegar em casa assim?
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A menina ainda hesitou, não sentiu maldade no que Pedro pediu.
Aos dez anos o busto de Luiza ainda era de criança, mas já revelava a mulher em transformação.
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Era a primeira vez que Pedro via tão de perto um corpo feminino.
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Sua experiência se limitava as revistinhas de Carlos Zéfiro, compradas com dinheiro da mesada e às escondidas na banca do Frank, jornaleiro italiano, ou a espiar, pelo buraco da fechadura, a mulata Lourdes tomando seu banho de cuia.
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Pedro estudava em um colégio de padres, o sexo além de tabu era pecado, sempre confessava as leituras dos gibis eróticos. Como a penitência não era muito pesada- talvez de propósito, o padre Roncart era complacente -voltava a lê-los.
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Na chácara de seu Antonio, não tinha macieira, porém Pedro, como descendente de Adão e Eva, já possuía o pecado original- segundo Santo Agostinho- seu corpo reagiu como o homem em que se transmudava.
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Vieram à sua cabeça imagens dos desenhos de Zéfiro, da mulata calipígia, dele recém-nascido na sala de parto, das palavras do padre do colégio e de como seria o purgatório e o inferno.
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Nada alterava as reações que se desenvolviam em seu físico, Pedro se sentia num crescendo, esquecendo o adolescente que era.
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Não sabia se era um sonho ou pesadelo, as sensações contraditórias, um pico de satisfação que o tornava capaz de realizar algo que não conhecia, seguido do medo daquele novo horizonte.
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Pedro teve sua cadeia de pensamentos interrompida.
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- Pedro, venha aqui!
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Era sua mãe. O cheiro do refogado do feijão que Lourdes fazia e do qual ele gostava tanto para colocar no pão, invadia a casa.
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Pedro comeu o sanduíche e voltou para o porão. Foi brincar de médico com Luíza. Isso ele sabia fazer !!!
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Autor: Munir Alzuguir
E-Mail:alzumunir@gmail.com

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

CONTOS DO MUNIR 98



FRAGMENTOS
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Uma casa antiga na Tijuca dois andares: o de baixo eram três porões, dois grandões e um pequeno, que chamávamos de porãozinho. Os grandes, bastante arejados com amplas janelas, eram dos irmãos mais velhos, o menor, com duas grades ao nível da calçada, pertencia à irmã, os irmãos mais novos tinham que pedir licença para brincar neles.
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Lourdes era a “secretária” da casa, naquele tempo se usava empregada mesmo. Mulata inzoneira, verdadeira Venus calipígia* marrom, tomava seu banho de cuia, dentro de uma bacia em um dos porões. Era a hora em que nós, moleques adolescentes, íamos espiar pelo buraco da fechadura em rodízio cutucado.
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Um dos porões foi certa vez cedido a uma tia, que viajara, para guardar seus móveis: armários enormes, um piano de cauda e outros móveis ocuparam todo o espaço, transformando-se em um labirinto ideal para a antiga brincadeira de esconde- esconde.
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O pai, libanês, que gostava de um arroz com borrachos*, prato típico oriental, transformou, por um tempo, um dos porões em carpintaria e construiu lá um enorme pombal, mais tarde fincado no quintal. Lá já existia um galinheiro, uma gaiola grande para criar coelhos , um cercado para cabritos, tudo feito por ele.
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Não pintava nada, e quando perguntado por que, dizia que era provisório.
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O porão, às vezes, se transformava em hospital onde nós, meninos, brincávamos de médicos com as meninas.
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Outras vezes, eram arenas de Box e Luta Livre.
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O quintal tinha árvores frutíferas, figueiras de figos brancos e roxos, as frutas protegidas dos passarinhos por saquinhos de papel, o plástico, hoje condenado, apareceu depois.
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O pé de cajá-manga ficava no quintal do vizinho, o que não impedia que dele usufruíssemos.
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Existiam ainda cinco amoreiras , as frutinhas, quando roxinhas comidas ou transformadas em licor.
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Na amoreira mais alta, um irmão enforcou nela a boneca da irmã, injustamente foi outro, usual praticante desse tipo de brincadeira, mas não desta vez, que levou a culpa e a surra de cinto.
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Todos sabedores da surra, vestíamos umas três ou quatro calças para amortecer as cintadas.
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Como a casa ficava na Tijuca, com automóveis poucos e só importados o jogo de bola era na rua mesmo.
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Havia também um campo de futebol, na subida para o Salgueiro.
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O morro em frente, Turano, tinha dono , não havia favela nem traficantes, as moças que moravam na casa no alto do monte , desciam e subiam diariamente nas indas e vindas do colégio.
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O porão ainda servia como sala de estudo. Lá estudaram com um dos irmãos, futuros engenheiros, um deles chegou a presidir o Clube de Engenharia, outro foi Diretor Geral do Departamento Nacional de Estradas de Rodagem.
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Mais tarde, também foi usado por um dos irmãos que, expulso com sua turma, da Escola Naval, para tristeza de seus pais, ali se refugiou para estudar para o vestibular de Engenharia.
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Concedida a anistia, formou-se Guarda-Marinha e orgulho de seu pai.
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Um dos irmãos ficou doente e ficou lá isolado até se recuperar, acreditava-se que ele estava com tifo.
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O vizinho era português e, como nós, uma grande família, um tio avô morava com eles.  Ficávamos espantados e nos divertíamos, ao vê-lo arrancar com um alicate de bombeiro os poucos cabelos brancos que iam aparecendo.
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A casa, alugada, não se conhecia inflação, mas a especulação imobiliária já aparecia, acabou sendo vendida.
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Felizmente, o pai enriqueceu e comprou outra, um pouco adiante na mesma rua, mais moderna, também de dois andares, mas sem o encanto e a magia dos porões.
*calipígia----de nádegas formosas
*borrachos----além de bêbados, filhotes de pombos
Autor: Munir Alzuguir
E-Mail:alzumunir@gmail.com