sábado, 23 de agosto de 2014

CONTOS e POESIAS de JOSÉ CARLOS FILIZOLA-002/2014



AMOR DOS IGUAIS

No Natal do ano passado recebi um cartão com uma foto do Helmut Newton chamada Sinergia. São duas mulheres  em pé, abraçadas. As duas vestem-se da mesma maneira, sapatos de saltos muito finos e altos. Usam meias calças e soutiens negros. As pernas estão meio entrelaçadas e elas olham o mar, em direção contrária à da camera. O poeta redefine a foto como sendo o Amor dos Iguais e me pede que fantasie. Lembra poeta?

Outro dia lembrei do poeta, indo para casa depois de um dia de trabalho difícil. Onibus vazio, ar condicionado numa temperatura boa. Reclino  o banco e durmo um pouco. Acordo no meio da viagem e reparo que num banco ao lado do meu viajam duas mulheres. Uma loura e outra morena. Pela maneira como estão sentadas fico curioso. Largo o corpo na poltrona, finjo que durmo e continuo observando com os olhos semicerrados. Podem ser duas amigas, contando as últimas... Tia e sobrinha pondo em dia as fofocas da família?  Mãe e filha? Difícil, mesma idade. De repente, ainda com sono, percebo...

As duas namoram discretamente.

Um braço sobre o descanso do banco, a mão pende solta, quase tocando a mão da outra que repousa sobre a perna.

Falam muito baixo e muito perto, olham-se diretamente nos olhos.

De repente estão de mãos dadas.

Quando a luz de fora ajuda, da para ver as pernas meio entrelaçadas.

O ônibus para e entra uma senhora idosa, o motorista liga as luzes enquanto ela se acomoda. Aproveito e mudo um pouco de lugar, olho em volta, esfrego o rosto com as mãos, enfim finjo que acordo e durmo de novo. Melhoro um pouco minha posição de observação. Tudo normal.
Nesta altura poeta, já comecei a escrever. Guardo avidamente as imagens que estou vendo. Tento bem codificá-las para melhor recuperá-las depois. Não posso deixar de lembrar da minha velha camera. É como se fosse fazendo uma foto após outra. Depois ampliá-las, cada uma na sua devida dimensão e  no claro escuro mais adequado, retocá-las, enfim, criar a história.

As mãos, voltam a conversar, e se acariciam.

As pernas continuam discretamente entrelaçadas.

Passam algum tempo sem falar com palavras, só mãos e pernas conversam, trocam juras, dizem coisas suaves, prometem, negam e concedem. Lindo. Fico eu lá na minha solidão pensando como é importante o toque. Como é importante saber ler um olhar. Saber soltar-se inteiro, conseguir passar tudo sem falar nada. Lá estão as duas, mostrando tudo isso, sinto que gosto delas. Não há uma dominação, elas repartem igualmente ação e passividade.

Agora estamos na grande avenida da Orla. As luzes apagadas e minhas amigas com as mãos dadas, conversam baixinho. O rosto da loura, refletido na janela, aparece e some, cada vez que passamos sob uma luminária da avenida. Como uma projeção, que repete sempre o mesmo slide. Parece uma boa cena  para um filme. A morena, meio de costas, fecha um pouco minha visão, protegendo simbolicamente aquele momento. Só vejo a parte lateral de seu corpo magro mas bonito. Usa jeans e tem pernas compridas.

Já chegando mais perto de onde vou descer, o ônibus encosta  e para. Acendem-se as luzes e entra um fiscal. O homem  atravessa o corredor, olhando tudo. As pessoas acordam, ajeitam-se nos bancos e voltam a dormir. As duas também acomodam-se no seu amor agora meio sonolento. Ainda com as luzes acesas, a morena encosta a cabeça no ombro da loura. Parece dormir. 

Voltamos a andar, as luzes apagam-se outra vez. Da minha posição percebo que a cabeça da morena escorregou um pouco para baixo e roça com suavidade na parte superior do seio da loura. Desce e sobe, acompanhando o balanço do ônibus, é um carinho de mestre!

Fico pensando que elas têm ainda uns bons trinta quilômetros até o destino final. Será que vão até o fim, vão descer juntas? Tudo começou ali  ou será que era um amor antigo e recomeçou? Sinto-me meio padrinho daquilo. Cúmplice anônimo. Não posso deixar de divagar que adoro ser cúmplice.

E eu? Acompanho as duas?  Para mim serão sessenta quilômetros de solidão. Como vai acabar a história. Clamo por um final.

Entramos no túnel. Novamente o rosto da loura projetado na janela. As luzes fazem de novo o efeito projeção, agora mais rápido. Os olhos semi cerrados e um ligeiro sorriso mostram o intenso prazer que sente. A cabeça da parceira continua sua carícia. Agora muito mais forte. Aquela loucura que nos coloca sós no mundo. Num patamar mais alto como se nada em volta existisse ou importasse. O isolamento a dois. Do meu posto mal vejo as mãos. Posso perceber que trabalham. Aparecem e desaparecem sob os panos das roupas. Escorregam avidamente sobre pernas e virilhas. Acariciam e tocam seios. Ora rápidas e fortes ora leves e lentas. Não posso ver o rosto da morena, mas sei que ela morde os lábios de prazer. A loura enlouquece e com os olhos semi cerrados finge não ver , isso excita ainda mais a parceira.

Entramos no longo elevado sobre o mar. Escuridão total. Seria bom que os automóveis fossem totalmente silenciosos assim poderíamos passar por ali ouvindo o mar quebrando nas pedras lá em baixo. Som de veludo no ouvido.

Outro túnel, estamos mais calmos os três.

De repente, percebo que participo daquele naco de tempo. Com certeza elas percebem meu interesse. Silenciosa e discreta como a de  todo bom cúmplice, minha presença faz parte do processo sinérgico. Agora tudo ficou claro. Posso descer e descansar. Posso continuar até o ponto final. Posso até mesmo sentar-me no banco de trás e formar um trio.

Minha função, como queria o poeta, foi criar  fantasia,. Agora é com vocês ...

Rio de Janeiro, 29 de Agosto de 1998.
José Carlos Filizola
E-Mail: jcfili@hotmail.com

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