AMOR
DOS IGUAIS
No Natal do ano passado recebi um cartão
com uma foto do Helmut Newton chamada Sinergia. São duas mulheres em pé, abraçadas. As duas vestem-se da mesma
maneira, sapatos de saltos muito finos e altos. Usam meias calças e soutiens
negros. As pernas estão meio entrelaçadas e elas olham o mar, em direção
contrária à da camera. O poeta redefine a foto como sendo o Amor dos Iguais e
me pede que fantasie. Lembra poeta?
Outro dia lembrei do poeta, indo para casa
depois de um dia de trabalho difícil. Onibus vazio, ar condicionado numa
temperatura boa. Reclino o banco e durmo
um pouco. Acordo no meio da viagem e reparo que num banco ao lado do meu viajam
duas mulheres. Uma loura e outra morena. Pela maneira como estão sentadas fico
curioso. Largo o corpo na poltrona, finjo que durmo e continuo observando com
os olhos semicerrados. Podem ser duas amigas, contando as últimas... Tia e
sobrinha pondo em dia as fofocas da família?
Mãe e filha? Difícil, mesma idade. De repente, ainda com sono,
percebo...
As duas namoram discretamente.
Um braço sobre o descanso do banco, a mão
pende solta, quase tocando a mão da outra que repousa sobre a perna.
Falam muito baixo e muito perto, olham-se
diretamente nos olhos.
De repente estão de mãos dadas.
Quando a luz de fora ajuda, da para ver as
pernas meio entrelaçadas.
O ônibus para e entra uma senhora idosa, o
motorista liga as luzes enquanto ela se acomoda. Aproveito e mudo um pouco de
lugar, olho em volta, esfrego o rosto com as mãos, enfim finjo que acordo e
durmo de novo. Melhoro um pouco minha posição de observação. Tudo normal.
Nesta altura poeta, já comecei a escrever.
Guardo avidamente as imagens que estou vendo. Tento bem codificá-las para
melhor recuperá-las depois. Não posso deixar de lembrar da minha velha camera.
É como se fosse fazendo uma foto após outra. Depois ampliá-las, cada uma na sua
devida dimensão e no claro escuro mais
adequado, retocá-las, enfim, criar a história.
As mãos, voltam a conversar, e se
acariciam.
As pernas continuam discretamente
entrelaçadas.
Passam
algum tempo sem falar com palavras, só mãos e pernas conversam, trocam juras,
dizem coisas suaves, prometem, negam e concedem. Lindo. Fico eu lá na minha
solidão pensando como é importante o toque. Como é importante saber ler um
olhar. Saber soltar-se inteiro, conseguir passar tudo sem falar nada. Lá estão
as duas, mostrando tudo isso, sinto que gosto delas. Não há uma dominação, elas
repartem igualmente ação e passividade.
Agora estamos na grande avenida da Orla. As
luzes apagadas e minhas amigas com as mãos dadas, conversam baixinho. O rosto
da loura, refletido na janela, aparece e some, cada vez que passamos sob uma
luminária da avenida. Como uma projeção, que repete sempre o mesmo slide.
Parece uma boa cena para um filme. A
morena, meio de costas, fecha um pouco minha visão, protegendo simbolicamente
aquele momento. Só vejo a parte lateral de seu corpo magro mas bonito. Usa
jeans e tem pernas compridas.
Já chegando mais perto de onde vou descer,
o ônibus encosta e para. Acendem-se as
luzes e entra um fiscal. O homem
atravessa o corredor, olhando tudo. As pessoas acordam, ajeitam-se nos
bancos e voltam a dormir. As duas também acomodam-se no seu amor agora meio
sonolento. Ainda com as luzes acesas, a morena encosta a cabeça no ombro da
loura. Parece dormir.
Voltamos a andar, as luzes apagam-se outra
vez. Da minha posição percebo que a cabeça da morena escorregou um pouco para
baixo e roça com suavidade na parte superior do seio da loura. Desce e sobe,
acompanhando o balanço do ônibus, é um carinho de mestre!
Fico pensando que elas têm ainda uns bons
trinta quilômetros até o destino final. Será que vão até o fim, vão descer
juntas? Tudo começou ali ou será que era
um amor antigo e recomeçou? Sinto-me meio padrinho daquilo. Cúmplice anônimo.
Não posso deixar de divagar que adoro ser cúmplice.
E eu? Acompanho as duas? Para mim serão sessenta quilômetros de
solidão. Como vai acabar a história. Clamo por um final.
Entramos no túnel. Novamente o rosto da
loura projetado na janela. As luzes fazem de novo o efeito projeção, agora mais
rápido. Os olhos semi cerrados e um ligeiro sorriso mostram o intenso prazer
que sente. A cabeça da parceira continua sua carícia. Agora muito mais forte.
Aquela loucura que nos coloca sós no mundo. Num patamar mais alto como se nada
em volta existisse ou importasse. O isolamento a dois. Do meu posto mal vejo as
mãos. Posso perceber que trabalham. Aparecem e desaparecem sob os panos das
roupas. Escorregam avidamente sobre pernas e virilhas. Acariciam e tocam seios.
Ora rápidas e fortes ora leves e lentas. Não posso ver o rosto da morena, mas
sei que ela morde os lábios de prazer. A loura enlouquece e com os olhos semi
cerrados finge não ver , isso excita ainda mais a parceira.
Entramos no longo elevado sobre o mar.
Escuridão total. Seria bom que os automóveis fossem totalmente silenciosos
assim poderíamos passar por ali ouvindo o mar quebrando nas pedras lá em baixo.
Som de veludo no ouvido.
Outro túnel, estamos mais calmos os três.
De repente, percebo que participo daquele
naco de tempo. Com certeza elas percebem meu interesse. Silenciosa e discreta
como a de todo bom cúmplice, minha
presença faz parte do processo sinérgico. Agora tudo ficou claro. Posso descer
e descansar. Posso continuar até o ponto final. Posso até mesmo sentar-me no
banco de trás e formar um trio.
Minha função, como queria o poeta, foi
criar fantasia,. Agora é com vocês ...
Rio de Janeiro, 29 de Agosto de 1998.
José Carlos Filizola
E-Mail:
jcfili@hotmail.com
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