sexta-feira, 5 de setembro de 2014

CONTOS e POESIAS do JOSÉ CARLOS FILIZOLA=003/2014



CABOS DE VASSOURAS

Recebo o envelope, só meu nome e nada mais, dentro só uma foto. São seis crianças. Meu Deus, somos nós!!! Os seis primos homens, juntos numa foto histórica! O mais velho deve estar com uns dez anos e o mais moço três. Em baixo a frase chave, encantada e linda, escrita por quem como eu, enxerga as coisas da vida por fotogramas:

“Do tempo em que os cabos de vassouras

sempre esperados e trazidos pelo Vô Miro
transformavam-se em cavalos
com os quais cavalgávamos despreocupados
as pradarias da fazenda da Nona Eliza e Vó Alzira” 

Os olhos mareiam, como agora. A mágica da mente remete no mesmo instante para lá. Sim eram pradarias, florestas, despenhadeiros e vales, grutas encantadas, mares sempre revoltos — por mais calma que fosse a travessia da vida — feras bravias, pássaros de grande porte e sobretudo a segurança que a tudo venceríamos. No final estaríamos lá, gastando nossas fortunas, ao lado das princesas que certamente conquistaríamos. Não resisti e resolvi continuar.

As pradarias às vezes enchiam-se de inimigos,

Alguns cruéis, como os agapantos de cabeça roxa.
Dizimados sem dó, com espadas e lanças,
Remanescentes da decoração de um baile de carnaval no clube.
  
Nossa fama corria mundo!
Como dizia o velho bisavô, alemão da gema de Wurtemberg,
Responsável direto pela proliferação do cruel agapanto.

— Alzira teus netos parecem uma horda de cavalos selvagens!!! 

Dos cavalos passávamos às motos,
Já não lembro quem, nem quando nem onde
Olhou as velhas cadeiras de madeira fechadas e sem a lona
E viu a imagem de potentes e reluzentes motocicletas!
  
Cada um tinha a sua, cada uma mais enfeitada que a outra.
Tampas de garrafas pregadas faziam os comandos,
Acho que algumas tinham faróis e pedaleiras.
Com certeza, eram todas muito bem equipadas.
  
Quantas horas passávamos ali, ao lado do tanque
Quantos milhares de quilômetros percorremos?
Para onde íamos, com quem?
Chegávamos a algum lugar, voltávamos?
Ou era só o preparo das máquinas que nos encantava?
Ajudem-me!!! Alguém lembra?
E tinha o sótão da casa da tia Ni
Secreto laboratório de química, cada um tinha sua mesa
Trabalhávamos horas a fio misturando os mais estranhos ingredientes.
Os tubos de ensaio, pequenos frascos de anestésicos
descartados por tio Albano,  até hoje sinônimo de dentista.
  
Às vezes esperando que as mães terminassem visitas
Surrupiávamos remédios velhos
A Domitila tinha câncer!!!
O remédio carregado lá para cima, sei lá como e por quem
 Era manipulado com um cuidado total. 

Intrincadas fórmulas cuidadosamente anotadas em cadernos individuais
Procurávamos alguma coisa especial?
Lembro que tentávamos obter borbulhas e fumaça,
Ou era misturar por misturar, obter novas cores e odores.
Quem lembra?

Fomos empreendedores também!
Provavelmente num ano de prosnóia (Prosit Neue Jahr) curto ...
Aquele ano deu muito limão,
A fabricação de limonada foi a solução.
Atuávamos em todas as frentes, colheita, fabricação marketing e venda
A fabricação era no tanque de lavar roupa, pobre da qualidade.
Mas todos compravam...
  
Quem brincou de pegar galinhas?
Invenções do Bindo, que nunca deixou sua criança morrer.
Soltávamos as galinhas e saíamos agarrando uma por uma.
Acabava a brincadeira com elas todas presas
E nós cobertos de merda e lama dos pés à cabeça!!!
  
Em alguns lugares gostávamos de ir,
A casa da Tata, tia, viúva, cabelo grisalho,
Olhos azuis, ou eram verdes,  muito bonitos.
A primeira casa da Dida, tinha balanço e escorrega,
Tudo pintadinho de novo.
Outros eram chatos, cerimoniosos
Mal podíamos sair das salas, pura tortura!

Um dia a vizinha procurou a Vó Alzira...
Rodeio para lá, rodeio para cá e vem a bomba.
Os meninos devem estar roubando vinho de laranja!!!
A velha não tinha vinho de laranja em casa...

Da investigação veio a verdade,
A turma estava simplesmente
Engarrafando mijo!!!

Furávamos abóboras do vizinho com ar comprimido,
Pescávamos as pobres galinhas com milho e barbante,
Guerra de cimento,
Corridas  com pneus velhos do Formiguinha .
 
Depois da chuva represávamos a água
Em poderosas barragens de argila amarela
Até hoje posso sentir aquela textura nas mãos!!! 

Amostras de tapete na casa do seu Augusto,
Banhos no Lageado,
Pescarias na Represa e na Barrinha,
O barulho do aço sendo trabalhado na oficina
É só fechar os olhos e ouvir.

Sons, imagens, cores
A árvore de bolinhas
O poço e o pé de butiá
A varanda e as hortênsias

Campeonato de trepar em árvores
 Ou arvre, no singular, mesmo que sejam muitas,
 Como dizemos até hoje
Quando estamos distraídos

Finalmente veio a separação 
Vínhamos morar no Rio
Já não lembro como aquilo bateu quando estávamos lá
Da saída, lembro do velho cachorro
O Texerinha, grande caçador que cresceu conosco

Calejado por tantos abandonos rápidos
Viagens curtas a Curitiba
 Farejou que aquela era a última e,
Ele que nunca foi disso, correu atrás de carro.
 
A estradinha era sinuosa e esburacada
Por mais que o pai acelerasse o carro
Curva após curva, lá estava o cão correndo
Cada vez mais devagar
Cada vez mais longe
Como num longo e triste
Adeus

No avião a carta da tia Ni
A mãe encharcou o jabô.
Onde será que anda aquela carta?
E o bafo quente do Rio de Janeiro
Começo de outra história
 
É isso aí moçada
A situação ficou difícil, tá ruim de agüentar?
Monta no cabo de vassoura
Cavalga um pouco
Passeia de moto
Se nada der certo
Mija na garrafa!!!

Te cuida que o Tio Nito
Tá esperando lá em cima
Para saber
Quem é o primeiro...
José Carlos Filizola
E-Mail: jcfili@hotmail.com

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