quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

CONTOS DO MUNIR - 28

EXPERIÊNCIA DE MÁQUINAS E OS ANJOS DA CASA DE LUZ VERMELHA
Foi na época em que os comandantes eram senhores e quase donos absolutos de seus navios.

O contratorpedeiro se encontrava em Recife há algum tempo, tempo suficiente para que uma grande parte da guarnição fixasse moradia nas casas de luz vermelha - residências das meninas que negociavam seus afetos. Tinham em suas portas lâmpadas vermelhas indicativas.

Alguns oficiais também aderiram. Era menos oneroso que um quarto de hotel ou de pensão, com a vantagem da companhia noturna.
Éramos quatro oficiais dos mais modernos e inexperientes da Marinha, iríamos ser promovidos a primeiros-tenentes em uma cerimônia naval bastante singular. Esta não é a história que iria contar, mas uma lembrança traz outra e faço um parêntese.

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O imediato, exercendo interinamente o comando, nos comunicou a boa nova: havíamos sido promovidos e a nossa troca de platinas seria feita em um jantar, após a sobremesa.

O uniforme seria o branco completo, também chamado pirulito por ser engomado e fechado até o pescoço. Ainda não existia o “Chiquinho” (uniforme branco-camisa de manga curta com platinas). Para nossa surpresa, não encontramos nenhum de nossos dólmãs. Na década, a camisa branca do pirulito levava preso, com pinos de metal, o colarinho sem pontas, duro de tanta goma; depois se passou a usar o colarinho já não tão rijo, abotoado à gola do próprio dólmã.

Apreensivos e bobos que éramos, comunicamos o fato ao comandante que não se mostrou preocupado e disse que vestíssemos um paletó de terno por cima da camisa, que até a sobremesa se daria um jeito.

Fomos jantar no salão reservado para nós em um restaurante próximo ao cais e, embora o comandante alegre como sempre, nos animasse, nos sentíamos constrangidos, parecíamos clérigos.

Na hora da sobremesa, o comandante fez um brinde de saudação aos novos primeiros-tenentes e anunciou a troca de platinas, bateu palmas e quatro formosas figuras femininas, vindas das casas de luz vermelha especialmente para a cerimônia, apareceram vestidas tão somente com nossos dólmãs. Nos ombros as platinas de segundo-tenente. O comandante determinou que trocássemos as platinas e vestíssemos os nossos dólmãs. Consideramo-nos promovidos e deixamos de ser quatis-rabudos, ou seja, pretensos oficiais.

Ah! Esqueci de dizer: pagamos a conta do restaurante!

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Mas continuemos com a história que o título sugere: no Recife, o contratorpedeiro estava atracado há alguns meses e, enquanto o pessoal da base executava os reparos estruturais, o de bordo trabalhava nas máquinas. Terminada a faina de motores, o comandante decidiu fazer uma experiência de máquinas e resolveu aproveitá-la para realizar um passeio marítimo com o povo da cidade. Cada membro da tripulação teria direito a um convidado ou convidada.
O comandante convidou o prefeito sua esposa e outros membros do gabinete.
Um oficial natural da terra, que tinha estudado em um colégio religioso, convidou alunos e alunas e também umas freiras, suas antigas professoras. Como era de se esperar, alguns jovens marinheiros convidaram moças das casas de luz vermelha.
O comparecimento no dia foi geral. Todos os convidados vestiram suas roupas mais bonitas. O colorido destas, em contraste com o cinza austero do navio, transformava tudo em festa. Nem as amiguinhas dos marujos foram notadas a não ser pelo fato de que já eram conhecidas de toda a tripulação.
O comandante havia chamado para ajudá-lo um prático, velho conhecido no Nordeste, com fama de ser excelente marinheiro.
Na hora de desatracar, o prático, conhecedor profundo das correntes locais, ao invés de fazer a clássica manobra de afastar primeiro a popa do cais, pediu máquinas adiante.
O comandante estranhou a manobra, mas não interferiu. Teria dado certo, não fosse por um pequeno guindaste na popa, chamado turco, que, estando em posição incorreta, projetava-se ligeiramente além do casco. Na ocasião em que o navio seguia adiante, quase raspando a doca e afastando-se dela por força da maré (como o prático havia previsto), o turco foi quebrando as lâmpadas dos postes da beira do cais, assustando todo mundo.
Fora do porto, o mar estava bravo e mais bravo ficava à medida que o contratorpedeiro se distanciava de terra.
No navio, uma onda de enjôo tomou conta de quase todos os convidados, à exceção das moças das casas de luz vermelha que, por razão desconhecida, pareciam verdadeiros lobos do mar.
A praça d’armas virou um verdadeiro hospital e em breve as “marinheiras” estavam lá ajudando as mocinhas do colégio, as freiras e até mesmo a esposa do prefeito que pareciam náufragos de tão enfraquecidas pelas náuseas.

Algumas “marinheiras” foram para a cozinha preparar chá, outras seguiram a orientação do médico de bordo na acomodação e administração de remédios às mareadas. Uma das madres disse que elas eram anjos.
O regresso ao porto foi abreviado. Antes do desembarque, o prefeito fez um discurso de agradecimento e enalteceu a solidariedade daquelas jovens e carinhosas moças. Verdadeiros anjos caídos do céu, concluiu ele.
Autor: Munir Alzuguir
E-Mail:alzumunir@gmail.com

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