segunda-feira, 19 de abril de 2010

CONTOS DO MUNIR - 36

AMERICAN WAY
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Era uma vez um contratorpedeiro.
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Éramos três oficiais brasileiros a bordo do contratorpedeiro americano USS PERRY. A parte teórica do curso de Tática Anti Submarina havia terminado na Fleet Sonar School em Key-West, FLÓRIDA. Embarcamos para um estágio de 30 dias no mar, em exercícios com submarinos.
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No BRASIL, o Presidente condecorava com a ordem do Cruzeiro do Sul o revolucionário e depois lendário herói cubano Che Guevara.
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Aparentemente, não havia, por parte da oficialidade americana, mudança do trato em relação a nós brasileiros.
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Os exercícios ocorriam sob a supervisão de instrutores, da escola de sonar e de oficiais de bordo, sem hora prefixada e todos os dias. Em um determinado dia, não nos convocaram para o normal adestramento.
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Notamos que o navio seguiu um rumo fixo e, ao cair da noite, avistávamos luzes de terra, ao longe.
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Foi então que subi ao local do centro de operações de combate, onde estavam os equipamentos de sonar e radar.
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Já passava das 22:00 horas, lá se encontrava de serviço um dos nossos instrutores de bordo, um primeiro tenente convocado após ter terminado seu curso civil de engenharia eletrônica. Explicou que a terra no radar era CUBA, os pontos luminosos: navios soviéticos, estavam sendo identificados por suas (deles) emissões de radar. Perguntou se eu não gostaria de ajudá-lo. Obtendo resposta afirmativa, passou-me um livro onde estavam catalogados diversas freqüências de radar e os tipos de navios que as usavam. Ficamos trabalhando em conjunto por quase duas horas.
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Pouco depois, subi ao passadiço onde estava outro oficial de serviço, um tenente cursado em Anápolis, logo me vendo, perguntou: “what are you doing here, you are supposed to be sleeping” (o que você está fazendo aqui? Você deveria estar dormindo). Disse isto de forma não muito amigável.
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Ainda deu para ver: Havana iluminada e as diversas silhuetas de navios de guerra, americanos e russos. Estávamos no meio de uma guerra fria que já se tornava quente.
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Na manhã seguinte, já com o navio longe do cenário da noite anterior, relatei o fato ao Imediato. O Comandante tomou conhecimento e, sem saber que decisão tomar, transmitiu por rádio a situação ao Comando da Força Tarefa que se absteve de decidir e encaminhou o assunto para o Comando de Operações Navais que deixou o julgamento para o Pentágono.
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À tardinha, veio a ordem para que o navio abandonasse a operação e regressasse a Key-West a fim de nos desembarcar juntamente com um capitão-de-mar-e-guerra americano, da reserva, cumprindo a bordo seu estágio bi-anual de adestramento.
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No retorno, avistamos uma embarcação com uma vela improvisada, praticamente à deriva, com cerca de dez pessoas a bordo, inclusive crianças, e, que acenavam por socorro.
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O Comandante manobrou para o resgate e trazendo-os para bordo, verificou que eram cubanos fugindo para Miami. Mandou-nos chamar para que servíssemos como intérpretes. Eram duas famílias cubanas há dois dias no mar, suas propriedades haviam sido confiscadas pelo novo governo, sentiam-se ameaçadas.
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As crianças enfraquecidas pelo enjôo, a água já racionada, ninguém tinha mais forças para remar. Todos já bastante maltratados por queimaduras solares.Foram encaminhados para a enfermaria.
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Chegamos a Key West à noitinha e desembarcamos de lancha. Os cubanos seguiram de helicóptero para um destino por nós ignorado.Fomos realojados na Base Naval.
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No dia seguinte, tivemos notícia que nosso regresso ao BRASIL se daria na data prevista para o término do curso, embora ainda faltassem quinze dias, até lá estaríamos liberados.Isto porque o avião da Força Aérea Americana que nos transportaria já estava com sua programação fechada com os nossos nomes.
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O mesmo acontecendo com o capitão-de-mar-e-guerra americano da reserva. Acontece que ele era dono de uma cadeia de lojas em Nova York. Tinha vindo para Key West em seu iate. Convidou-nos para almoçar a bordo aonde fomos, e passamos a champanhe e caviar. Pediu desculpas pela forma como tínhamos sido tratados e sentia não poder nos levar para um passeio em seu barco.Iria regressar, naquela mesma tarde, para Nova York, onde morava, em avião de carreira. Os negócios o esperavam.
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Resolvemos ir para Miami, lá ficamos quinze dias comendo hambúrguer e tomando coca-cola.
COMENTÁRIOS
1)O navio seguiu para uma área de conflito com três oficiais da Marinha de uma nação cujo presidente se manifestava claramente hostil à política do governo americano.Intencionalmente ou desconhecimento de que estávamos a bordo?
2)Note-se a diferença de comportamento entre o oficial procedente do meio civil e o de carreira, cursado na Escola Naval de Anápolis.Personalidade ou formação?
3)O fato de surgir uma ocorrência não prevista nos Manuais, levou a decisão até ao Pentágono.O Comandante poderia decidir?
4)O Comandante não hesitou em cumprir um dever humanitário, nos convocando inclusive para ajudá-lo.
5)A programação, inicialmente estabelecida para o nosso retorno, teria que ser cumprida apesar dos acontecimentos.Poderia ter sido mudada?
6)A percepção do mais experiente, no caso o capitão-de-mar-e-guerra americano, de que nos era devido um pedido de desculpas.Ou terá sido por ser um civil fardado?
7)O enfoque de alguém do setor privado comparado ao militar.Tempo é dinheiro!
8)Finalmente o jeito brasileiro de seguir o AMERICAN WAY.
Autor: Munir Alzuguir
E-Mail:alzumunir@gmail.com

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