quinta-feira, 6 de maio de 2010

CONTO DO JOSÉ FRAJTAG

ESSE SEU OLHAR
Guilherme e sua mulher Leonora, após alguns anos de casados, passaram a morar em apartamentos separados e em bairros distantes um do outro, no Rio de Janeiro. Eram no entanto pessoas bastante comuns e absolutamente nada mais extraordinário costumava acontecer em suas vidas.
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Isto mudaria profundamente naquela fria madrugada de junho, ao final de uma festa de S. João na Tijuca. Guilherme foi de metrô até perto da festa;Em seguida apanhou um táxi e pegou Leonora no Alto da Tijuca. Na volta, pegou outro táxi, a deixando em sua casa. Sempre fazia assim nessas ocasiões, jamais dirigiria seu próprio carro naquele porre. Prosseguiu no mesmo táxi depois para a sua casa direto, pois de madrugada não havia metrô para voltar. Além disso, como quase todo Carioca, tinha um receio de atravessar os grandes túneis a essa hora da madrugada. Por isso, ao voltar pediu para ir para o Leblon, via Aterro do Flamengo, embora fosse um trajeto muito mais longo. É complicado morar no Rio nesses tempos violentos.
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A viagem transcorria normalmente, e Guilherme, apenas conversava com o motorista. Ao passar pelo Aterro, repentinamente, dois cães absolutamente iguais passaram em desabalada pela frente do táxi. Levando um tremendo susto, o motorista teve de dar um golpe de direção e passando em cima de um buraco, subiu uma pequena colina de grama, como muitas que existem no Aterro, quase se chocando com uma árvore. Por sorte, nada de grave aconteceu. O motorista, embora trêmulo, virou a direção do carro e continuou dirigindo. Por ser tarde da noite, não perceberam nenhum risco de outro carro se chocar com eles, embora tivessem escapado de um possível assalto.
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Ainda branco de susto, Guilherme chegou ao seu apartamento no Leblon. Assim que saltou, pôs a chave na porta, mas esta não entrou de forma alguma. Teve de acordar a filha, o cachorro e a empregada, que vieram abrir a porta assustados. Enquanto explicava o ocorrido, Kiko o cachorro agia estranhamente e nervoso vinha cheirar seu dono latindo desesperadamente. Após alguns minutos de vários afagos ele se tranqüilizou e foram todos dormir.
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Ao ler os jornais, na manhã seguinte, levou um susto, pois não mais que quinze minutos depois deles, outro táxi, também com um passageiro, tinha passado, possivelmente no mesmo buraco e em seguida batido numa árvore. Ambos tinham morrido incinerados após o táxi pegar fogo. Poderiam ter sido ele e o seu motorista. Que sorte! Ao mesmo tempo sentia pena dos pobres homens e de seu terrível destino!
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Logo após o café, teve de descer à Rua para chamar um chaveiro e pediu que ele verificasse o que estava ocorrendo com a porta. Ele logo após examinar tudo, tendo até desmontado a fechadura, disse:
- O senhor tem certeza que a chave é esta? Pois ela não é desta porta e a fechadura está perfeita!
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Guilherme olhou a chave com cuidado, pois poderia tê-la trocado em algum lugar. Mas era a sua chave tão conhecida!
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- Olhe aqui!- disse ele atônito, para o homem. Então eu não conheço minha própria chave?
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- Meu senhor! Eu conheço o meu serviço e essa chave não é daqui.
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- Tetê!-gritou ele, chamando a filha. Chegue aqui um minuto e traga seu chaveiro.
Teresa ou Tetê como é chamada por todos, com seus 28 anos, já está noiva, mas ainda mora alternadamente, ora com ele, ora com a mãe. Ela veio e trouxe suas chaves. Uma delas serviu na porta perfeitamente. Para não complicar ainda mais aquela situação, Guilherme pediu ao chaveiro que fizesse uma cópia da chave de Tetê. Ele pegou a chave, desceu ao seu pequeno quiosque e daí a dez minutos veio com a cópia que funcionou também.
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Nesse ínterim, tentou esclarecer o fato com Tetê. Ficou como doido, achando que ela por algum motivo tivesse trocado o segredo. Ela tinha o hábito de às vezes lhe criar pequenos problemas, que normalmente só serviam para irritá-lo. Apesar dos seus 28 costumava agir como uma adolescente. Mas ela lhe garantiu que tanto a chave como a fechadura, eram as mesmas que sempre foram. Guilherme devolveu a chave de Tetê ao chaveiro, que a examinou detidamente e viu que era realmente uma chave meio desgastada. Ainda para confirmar pediu a chave de Antonia, a empregada, que igualmente funcionou. Nem Guilherme nem ninguém, conseguiram explicação alguma para o acontecido. Guilherme desceu à garagem para pegar o carro, e as chaves também não entraram. Nova ida a um chaveiro e esta mais demorada, pois chaves de carro com chip são um problema. Na casa de Leonora o problema se repetiu, mas pessoas acabam se acostumando mesmo com as coisas mais loucas. Alguns dias depois, todos foram esquecendo os estranhos fatos e a vida retomou sua rotina.
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Guilherme e sua mulher entraram de férias e com viagem marcada para daí a uns dias. Enquanto ele aguardava, uma de suas distrações ultimamente era a de baixar ou como se costumava dizer, downlodear musicas via Internet. Tentava trocar seus velhos discos por novas versões digitais. Por conta dessa mania, fez uma curiosa descoberta!
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Conseguiu naquele dia, uma de suas musicas preferidas, cantada por Nara Leão: “Este seu olhar”. Conhecia essa canção até mesmo de trás para frente. Ao ouvi-la no computador, percebeu de imediato então que a letra da musica estava ligeiramente diferente, ouviu várias vezes e Nara falava “Esse seu olhar” em vez de “Este seu olhar” e a voz de Nara soava diferente, mais melosa do que aquela voz tão conhecida. Como tinha um excelente ouvido, achou também que ela desafinava um pouco nesta canção.
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-Ora essa!-pensou ele. Nara foi sem dúvida, segundo Guilherme, a cantora mais afinada do Brasil. A rotação obviamente estava alterada. Ouviu de novo e imaginou que fosse uma versão desconhecida. Foi à cata de outra cópia. Levou algumas horas e conseguiu uma cantada por Dick Farney e outra por Tom Jobim. A de Dick o deixou maravilhado, pois ele cantava “Este”, mas não pôde acreditar ao ouvir Tom Jobim. A letra era cantada da mesma forma errada e logo por Jobim que era o autor! Lembrou-se então que ele a tinha em um velho LP de vinil de Nara. Foi à estante e após uma busca frenética o achou.
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Pôs o LP no toca-discos. Para sua decepção, após tantos anos, parado sem uso, o aparelho estava quebrado. Levou o toca-discos feito um alucinado para uma oficina. O homem olhou para aquela peça pré-histórica, deu um sorriso e disse:
- Lamento, mas não tenho peças para ele no momento, mas se o senhor deixá-lo posso encomendar o que precisar, mas vai demorar uma semana no mínimo. Reclamou que iria viajar etc., mas o homem foi irredutível.
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Ele se conformou e deixou o aparelho lá. Foi nesse meio tempo, baixando outras músicas. Com a pulga atrás da orelha, ouvia uma por uma. Tocou Michele dos Beatles, que também conhecia e cantava com perfeição. Para seu espanto ele a achou um tantinho diferente. Mas o pior é que leu que os seus amados Fab Five agora eram apenas quatro! Onde foi parar o Pete Best?
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Ficou feito louco, gritou pela Tetê, que logicamente o achou muito esquisito e disse antes de voltar a se trancar no quarto:
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- Pai, qualé? Foi para isso que o Senhor me chamou? Beatles Five? Eu, hem? O Senhor pirou!
Soube consultando a Internet, para seu absoluto espanto, que Pete Best foi um Beatle trocado logo no início pelo Ringo Star após uma briga. Isto tinha acontecido antes que fosse gravado o primeiro disco de sucesso. Porém na sua memória desde o início eles eram cinco. O Pete Best fazia dupla com Ringo.
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Ele ainda pensava com seus botões:
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- Os Beatles, lógico, todo mundo sabe, que só acabaram após o assassinato de Paul Mcartney. Mas lá na NET quem tinha sido assassinado era o John Lennon! Deve ser alguma brincadeira! Não é possível! Quem poderia estar fazendo isso comigo? Tonto, e sem respostas, teve de tomar um tranqüilizante para dormir.
O toca disco, por sorte tivera apenas uma pequena correia de borracha, que havia se desgastado. No dia seguinte ele o tinha de volta, funcionando. Pôs então o disco de Nara direto em “Este seu olhar”. Quase caiu de queixo ao chão, pois a música que ele conhecia tão bem estava cantada errada. Nara estava com a voz ligeiramente mais grave e desafinava! A versão era idêntica à que tinha baixado da NET.
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Saiu de casa, meio sem ar, e deu uma caminhada pelo bairro e só aí foi notando que tudo estava um pouquinho diferente! Seu prédio que sempre foi pintado de branco, agora estava com a cor bege claro. O porteiro garantiu que sempre foi assim e dava para perceber que a tinta estava velha. Ao ver a placa da sua rua, outro pequeno choque ao ler Rua Barão de Jaguaripe.
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- O quê é isso? Eu sei que sempre morei na Barão de Jaguaribe! Foi olhar outras placas e estavam todas iguais. Não havia outra explicação, ou ele era o cara mais distraído do mundo ou estava enlouquecendo. Procurou um psiquiatra que lhe recomendou alguns remédios e que passasse uma temporada em algum hotel-fazenda, sem jornais, telefone ou TV.
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Guilherme por coincidência, ia mesmo para um lugar assim com Leonora. Foram a Penedo, onde ficaram uma semana. Tetê e seu noivo acabaram indo também preocupados com a saúde do pai. Ficaram lá desligados de tudo, só tomando banhos de cachoeira, saunas e indo no sábado ao delicioso bailinho da cidade. Mas foi a gota de água quando descobriu que estava num vilarejo Finlandês!!! Ora ele já conhecia Penedo de outras ocasiões e sabia que tanto a simpática cidadezinha, como a sauna, como todo mundo sabia eram de origem sueca!
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Foi então que por pura sorte, descobriu que não estava louco! Descobriu também por que Leonora não tinha brigado com ele! Ele não tinha comentado o seu novo corte e cor de cabelo. Ele tinha percebido, mas preferiu ficar quieto com receio de dar algum furo. Apenas dizia como a achava mais linda ainda. Fez muito bem, pois ela já o havia cortado e pintado assim há semanas. Como um raio, ao ver um filme de ficção científica na TV do seu quarto no hotel, veio-lhe a explicação de tudo. Deu um grito que acordou Leonora. Foi um custo fazê-la voltar a dormir. Somando todos os detalhes estranhos, só havia uma explicação possível. Agradeceu aos céus o seu gosto pelo gênero, pois de outra forma estaria lentamente, caminhando para uma inevitável loucura.
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Ao passar em cima do buraco no Aterro, de alguma forma ele e o motorista, juntamente com o Táxi, atravessaram uma passagem da Quarta dimensão e estavam irremediavelmente num mundo alternativo. Os dois cães provavelmente eram duas versões do mesmo cão! Consultou no computador seus documentos de identidade e CPF. Por sorte os números foram mantidos, mas certamente as impressões digitais não. Ele as testou e encontrou diferenças que comprovaram a sua teoria. Isso lhe tirou algumas noites de sono, pois teria de inventar para as autoridades uma historia fantástica em caso de necessidade. Para algumas coisas, entretanto ele não encontrava resposta:
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- E eu? Pensava ele, porquê não há dois de mim? E deveria também haver dois do motorista, dois táxis iguais etc., mas isto certamente daria manchetes nos jornais! Ficou com pensamentos torturantes durante dias até que ao retornar ao Rio, resolveu consultar edições de Jornais antigos.
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Relembrou o acidente que havia ocorrido dias antes. Naquele mesmo dia e hora, um outro táxi tinha passado por um buraco no Aterro, batido em uma árvore e pegado fogo. O motorista e seu passageiro foram incinerados. Ele conseguiu na NET ler os detalhes: O motorista e o carro foram identificados, mas seu passageiro não. Como ninguém havia reclamado seu corpo, ele tinha sido enterrado como indigente. O estranho do fato é que o motorista, que todos pensavam ter morrido, reapareceu no dia seguinte, com carro e tudo. A conclusão da polícia é a de que o Táxi incinerado era um carro pirata, clonado. Ou seja, o carro tinha sido roubado e os registros, números do carro que havia pegado fogo eram falsificados e o motorista era um criminoso. O caso foi então encerrado. Era uma explicação bem lógica, mas longe da verdade. Quando viu a foto de Josué, o motorista que havia ressuscitado, Guilherme lembrou-se imediatamente de seu rosto. Esse fato foi a última peça do quebra-cabeça.
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Conseguiu o telefone de Josué e ligou para ele:
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- Senhor Josué! Não se assuste! Meu nome é Guilherme e sei de todos os problemas que o senhor tem passado! Lembra-se daquele quase acidente no Aterro? É isso mesmo! Aquele de duas semanas atrás! Você se lembra dos dois cachorros cruzando na sua frente? Isso mesmo! Eu era o seu passageiro! Ele ouviu do outro lado da linha um choro baixinho!
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Josué respondeu, com a voz chorosa, que a vida dele tinha virado de cabeça para baixo e estava a ponto de ser internado. Marcou um encontro com ele, que chegou transtornado:
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- Seu dotô, do Céu! Eu tou pirando! O que qui tá acontecendo cumigo? Naquela noite adispois de deixar o dotô, fiquei uns dias zanzando pelas rua até eu querê vortá. Quando eu vortei pra casa, tava tudo adiferente. Minha chave não entrava na fechadura. Minha mulher achava qui eu tinha morrido e ficou qui nem louca quando me viu di vorta. Tinha mudado o cabelo e trocado o cachorrinho qui a gente tinha por um gato. Ela jura prá todos os Santos qui sempre tivemos esse gato e diz qui fui eu qui enlouqueci! Tô inté indo vê um pissicatra. Me ajuda seu dotô!
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Custou-lhe um bocado de tempo para explicar a Josué, com suas enormes olheiras, o que estava acontecendo. O pobre homem nunca tinha pisado numa escola. Após muitas horas e muitos chopes, achou que ele finalmente tivesse entendido que o Guilherme e o Josué originais deste mundo não mais existiam. Eles eram as outras versões vindas misteriosamente de um outro mundo alternativo e os tinham substituído. Guilherme checou os números dos documentos de Josué que também estavam corretos, assim como os números do carro, mas alertou a ele sobre o detalhe das impressões digitais dos dois não coincidirem com a das suas cópias. Para o resto da vida terão de evitar tirá-las de novo. Josué foi aconselhado a procurar outro emprego, pois na época da renovação perderia a carteira de motorista e correria o risco de ser preso.
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Conseguiram saber onde eles haviam sido enterrados e foram aos respectivos cemitérios prestar sentidas homenagens. Tomaram todas as precauções para que ninguém desconfiasse de nada.
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Hoje só lhes resta o conformismo. Aos poucos ambos foram se acostumando com a situação. Josué e Guilherme hoje são bons amigos. Só eles sabiam desse fantástico segredo e pretendiam que assim ficasse. A alternativa é a da internação de ambos. Ainda bem para eles que a maioria das mudanças foi bem pequena e virou até um divertimento descobrir as diferenças, embora só possam rir delas sozinhos. Ao conversar sentem pena das suas viúvas, da outra dimensão. Só não conseguiram nunca se acostumar com essas nojentas baratas, que não existiam em suas memórias.
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Há uma compensação para Guilherme, e que compensação! A Leonora dessa versão é algo mais linda, e isso lhe proporciona um pequenino e excitante detalhe: Ela não sabe, mas para ele, Leonora é uma nova mulher e ele estava vivendo uma nova vida de recém casado; Melhor ainda, a nova Leonora seria um tipo de amante. Ao pensar no assunto ficava extremamente excitado e sua vida sexual foi às alturas. Leonora, sem saber o porquê também ganhou com a nova situação de um maridinho amoroso como nunca e em contrapartida o ama muito mais do que a outra. Ela imaginava que por Guilherme ter escapado da morte tinha reaprendido a viver. Como, porém na vida nada é 100%, às vezes, secretamente Guilherme pensa na sua outra Leonora, a “viúva” e chora por ela. @.
Autor:José Frajtag

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