sexta-feira, 5 de outubro de 2012

CONTO DO MUNIR 96

DUAS HISTÓRIAS TRISTES E PARECIDAS
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Primeira história.
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Fernando Kingkber tem cinquenta e quatro anos, neurocirurgião, extremamente competente, segue sua rotina de vida, cuida de sua aparência física, alto, bem apessoado, faz musculação em uma academia próxima à sua casa no final do Leblon.
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Casado com uma linda mulher, não tinha filhos.
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Ao cair da tarde, passeia com seu pequenino poodle, usa uma roupa justa de lycra preta, própria para ginástica, em contraste com a brancura do cachorrinho.
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Bem sucedido, algumas frequentadoras do mesmo ginásio, o enxergavam como o homem ideal.
Sumiu por um tempo; sua ausência foi sentida.
Era figura para ser notada.
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Simpático, tinha sempre um sorriso amável para porteiros e pessoas com quem cruzava nos arredores.-Lembrava bastante o hábito americano de cumprimentar os vizinhos de rua.
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A princípio, pensou-se que houvesse viajado, ou mudado.
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Reapareceu com a mesma roupa, ainda levando o poodle, porém, de mãos dadas com a mulher.
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O andar de atleta, os músculos ressaltados pela lycra apertada.
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Havia, entretanto, uma mínima diferença, seu corpo parecia mais rígido.
Tomou um cafezinho no Armazém do Café, havia outro casal conhecido, ficaram conversando.

Estávamos em junho, fazia frio e chovia bastante.

O Dr. Fernando deixou de ser visto.

Voltou a caminhar em julho, quando os dias se tornaram luminosos, a mulher ao seu lado, levava o cachorrinho, o outro braço apoiava o marido.

O médico já não cumprimentava as pessoas, seu rosto pálido tornara-se inexpressivo.

O olhar, perdido no infinito do horizonte.

Ainda mantinha o porte esguio, resultado de anos de esporte.

Continuava tomando seu cafezinho com o casal amigo, a dificuldade no falar se manifestava, ficava difícil entendê-lo, sua voz era baixa e pastosa.

 Os primeiros tremores apareceram.

Em agosto, seu andar era oscilante. A esposa o amparava. O rosto parecia uma máscara de cera.

Estava usando óculos, o corpo curvado, ainda usava a lycra preta,agora folgada. O cãozinho preso em uma de suas mãos.

Em setembro, reapareceu. Muito magro. Envelhecera.

 Agora, acompanhado pela mulher e uma enfermeira. O poodle já não os acompanhava.

Em outubro, não foi mais visto. 
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Segunda história
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Natale tinha vinte e três anos quando prestou concurso para Juíza no STJ. Loura, olhos cor do céu, em um dia de primavera sem nuvens.
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Morava em uma mansão no Alto da Boa Vista. Não descuidava de seu físico, em casa tinha uma pequena academia de ginástica e na piscina quase olímpica, nadava no mínimo quarenta e cinco minutos.
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O rosto de linhas angulosas em simetria perfeita, a tornava uma beleza singular e mostrava a determinação de uma vencedora.
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Foi uma das pioneiras das juízas e delegadas lindas que passaram a integrar o nosso Judiciário e abrandavam as sentenças e prisões com sua beleza.
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Em sete anos passou a desembargadora.
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Casou-se, ainda juíza, com um capitão médico do Corpo de Bombeiros.

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Demetrio Abeid estava com noventa anos, empresário, enriquecera com a abertura da Zona Franca de Manaus, para onde transferira suas empresas.
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Abeid havia parado de trabalhar dois anos atrás, tornara sócios os seus empregados e sequer se preocupava com os lucros que mensalmente eram depositados em sua conta bancária.
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Casado há sessenta e cinco anos, mudara-se para o Leblon. Vivia com a esposa em uma cobertura na Delfim Moreira. Não tinham filhos, envelheceram com saúde.
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Certa madrugada, ele e a esposa foram acordados por alguém vestido como um astronauta. O homem, alto e forte, carregou ambos, com rapidez por uma densa nuvem quente de fumaça, salvando-os do incêndio que destruía voraz o apartamento.
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Natale, casada há cinco anos, dividia seu tempo entre o lar e o Judiciário, três filhos, era feliz; por sua genética viveria de forma saudável por longo tempo. Os pais pareciam prever assim.
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Seu salário de desembargadora somado ao do marido, agora coronel, sustentava com folga as necessidades da família.
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Os primeiros sinais apareceram antes de completar cinquenta anos, ainda moravam na Tijuca. Quase imperceptíveis, pequena dificuldade em controle de movimentos, tremores rápidos que desapareciam ao segurar um objeto. Fora diagnosticada com o Mal de Parkinson.
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Demetrio ficara viúvo, faleceria um ano depois da morte da mulher. Em seu testamento, deixaria a cobertura da praia do Leblon e mais alguns milhões de dólares para o oficial do Corpo de Bombeiros, que resgatara sua vida tempos atrás.
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A família mudou-se para a Delfim Moreira.
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O marido de Natale, herdeiro do milionário, era torcedor fanático do Flamengo. Nos dias de jogo de seu time, promovia churrascos à beira da piscina, regados a uísque de doze anos. Se seu time estivesse perdendo, palavrões eram gritados e possivelmente ouvidos até na praia.
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Nessas ocasiões, apareciam as amigas de Natale, algumas já separadas, que, às vezes, manifestavam um interesse demasiado, um tanto cruel, pelo dono da casa, bem apessoado e rico.
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Natale aproveitou por pouco tempo a vista do mar. Sua saúde se deteriorava com a doença. Seus talheres foram adaptados para que tivesse firmeza em segurá-los, bebia com a ajuda de canudinhos.
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Vivia sonolenta face à dificuldade de conciliar o sono.Entretanto mantinha-se lúcida. Teve que se aposentar precocemente.
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Raramente, saia com a família para passear no calçadão.
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Os churrascos continuaram, mas só as amigas marcavam agora a presença feminina.
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EPÍLOGO
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Natale e Fernando foram selecionados, devido a seus excelentes históricos físicos, por uma Junta Médica para serem submetidos ao tratamento experimental do Mal de Parkinson por células troncos.
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Os resultados pareciam promissores. Ambos estavam respondendo aos estímulos cerebrais e capacidade motora.
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Entretanto, alguns efeitos colaterais estranhos passaram a surgir. A personalidade de Natale se alterava.
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Ela, pessoa tranquila que era, manifestava uma extrema compulsão por sexo. O psicoterapeuta que a acompanhava assustava-se, à medida que o tratamento prosseguia.
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Os médicos pensaram em interromper o tratamento, a família consultada preferiu, na palavra do marido, prosseguir.
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Por uma dessas ironias do destino, o Dr. Fernando fora o pioneiro dos estudos sobre esse processo de cura.
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Havia até mesmo previsto essa mudança de comportamento,face às novas sinapses nervosas que seriam criadas.
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O comportamento psicológico dele não sofria alterações.
A evolução da terapia, embora lenta, mostrava um caminho de sucesso.
Autor: Munir Alzuguir
E-Mail:alzumunir@gmail.com


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