sábado, 21 de agosto de 2010

CONTOS DO MUNIR - 46

O MENINO POBRE
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Era uma vez um menino
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Marquinhos era um menino branco de olhos claros, divergia muito de seus irmãos escuros e olhos castanhos. Ainda bebê fora deixado por sua mãe em um orfanato. A família que o adotara morava na ladeira de uma favela; já eram dois filhos, uma menina, e um menino que se recuperara de dengue hemorrágica, desenganado que fora pelos médicos do INSS. O SUS ainda não havia sido implantado.
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Marquinhos era o resultado da promessa feita por seus pais adotivos ao Menino Jesus.
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Em princípio pensaram em um garoto que mais se integrasse aos irmãos.
Eles nunca imaginaram que aquele lourinho tivesse sido largado pelos pais e ainda mais: a semelhança com as imagens de Cristo criança lhes transmitia a mensagem de que ele deveria ser o escolhido.
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O pai adotivo de Marquinhos era pedreiro, oficio que aprendera na cidade com seu Manoel, mestre de obras português, tornou-se um perito e as lajes que construía eram consideradas as mais seguras. Verdade que não aceitava fazer nada em áreas de risco. Sempre levava o “lourinho”, apelido de Marquinhos, com ele. O guri era magrinho e muito ágil, parecia um gajeiro das antigas embarcações à vela.
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Com a vinda de Marquinhos para a família a mãe encerrou o costume de deixar os meninos sem calça para economizar a lavagem de roupas. Não se sabe por quê... talvez as fraldas descartáveis estivessem mais acessíveis ou a ela não agradasse ver seu anjinho branco com as partes desnudas.
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Na comunidade, por ocasião das brincadeiras de polícia e ladrão os meninos gostavam mais de ser o ladrão, queriam sempre que o branquinho fosse o policial. Ele não gostava dessa discriminação e preferia jogar futebol.
Alguns estrangeiros viviam nas proximidades na subida do morro, a maioria clara, era comum ver alguns de camisa branca, manga curta e gravata com um livro na mão, era fácil identificá-los como Mórmons.
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Os pastores evangélicos usavam terno e tinham sempre uma Bíblia nas mãos.
Outros eram mesmo moradores com empregos formais.
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Os traficantes estavam em todas as partes da comunidade, era possível avistá-los andando armados em suas motos antes das sete horas, ocasião em que os carros de policia iniciavam suas rondas. - Então ficavam invisíveis.
Alguns meninos um pouco mais velhos que Marquinhos ficavam de vigia nos terraços observando o movimento.
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As motos-táxi começavam a circular levando em suas garupas as moças que trabalhavam na zona sul. A mãe de Marquinhos era uma delas, aproveitava para levá-lo ao colégio, os outros irmãos por serem maiores iam caminhando. O menino era também um passe livre para a moto não ser parada.
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O “lourinho” já chegara à idade de ser convocado, seria um soldado precioso; com boas roupas iria parecer um menino “zona sul”, --ótimo na distribuição. A proposta foi feita ao pai do menino, o pagamento diretamente a ele, quase irrecusável pelo valor. Foi negada, um pouco por medo e mais pela lembrança da promessa. A conversa era feita agora com um rapaz de 23 anos. Anos atrás, o proponente era outro, menos jovem, morto pela polícia; tentara recrutar os irmãos mais idosos de Marquinhos e o pai igualmente recusara. Agora a tentação era maior, as construtoras já haviam chegado perto e sua renda caíra bastante.
A convocação dava preferência aos meninos e meninas sem família, mas as baixas se acentuaram com o policiamento.
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A escola da comunidade tinha os cursos até a quinta série. Os irmãos adotivos de Marquinhos já haviam terminado o ginásio, um era porteiro de um prédio, dormia no emprego, a irmã fazia um curso noturno de enfermagem.
Certo dia a TV local anunciou que a escola fecharia por ordem do tráfico. A mãe resolveu levá-lo para o trabalho, era a casa de um oficial da Marinha de Guerra.
Marquinhos ficou, no quarto de empregada, vendo desenhos animados na TV. A mãe o chamou para ajudá-la em qualquer coisa. Foi quando Marquinhos notou a espada, dourada e reluzente. Ficou deslumbrado.
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Já havia visto inúmeras armas de fogo incluindo metralhadoras, espingardas calibre 12 de cano serrado, pistolas Glock, revolveres 38, até mesmo uma Colt 45, Fuzis AK-47.e M-16. Era capaz de identificá-las.
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Aquela arma era diferente, um verdadeiro símbolo. Viu também a fotografia do oficial fardado portando a espada. Ficou fascinado. Perguntou a mãe como ele poderia ter uma espada de verdade igual aquela.
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A história chegou ao conhecimento do dono da casa, achando que o menino tinha chance começou a acompanhá-lo e direcionar seus estudos.
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Quatro anos depois Marquinhos fez exame para o Colégio Naval e foi aprovado.
Era algo inusitado ver aquele menino uniformizado uma vez por mês subindo a ladeira de sua casa.
O rapaz prosseguiu a carreira na Marinha, recebeu das mãos de sua mãe a ambicionada espada com um sorriso de alegria, ao ser nomeado oficial.
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Anos mais tarde passou no exame de Práticos, foi para o Porto de Vitória, passou a receber o equivalente a mais de cinquenta mil dólares por mês. Adquiriu uma cobertura na Praia do Canto e chamou os pais para irem morar lá. Não aceitaram, acharam a vista do mar não tão bonita quanto a que agora eles tinham na sua laje da favela.
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Marquinhos quando vinha ao Rio ia visitá-los. Certa vez curioso por saber quem eram seus pais biológicos foi com a mãe à Creche D.Vera no alto do morro, local onde fora deixado. Soube que sua mãe era uma gaúcha que fazia mestrado no Rio e se apaixonara por um italiano em Búzios, abandonando-a quando engravidara. ...Mas essa é outra estória.
Autor: Munir Alzuguir
E-Mail:alzumunir@gmail.com

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