domingo, 6 de novembro de 2011

CONTO DO JOSÉ FRAJTAG - Parte 2

George

Capítulo 2

Assim que terminaram os shows, liguei do quarto mesmo para minha casa. O número estava bem claro na minha memória, embora eu ainda estivesse zonzo. Gotas de suor frio brotavam da minha testa, e eu fazia o possível para que os rapazes não percebessem a minha angústia. O telefone tocou e quem atendeu foi Janet, minha filha. Dei um profundo suspiro de alívio, pois eu acabava de provar para mim mesmo, que eu não estava louco. Pedi para falar com Charles, dizendo que era um amigo dele. Minha filha me disse que ele estava em coma no Hospital Bellevue e que Flora, minha mulher estava lá com ele. Fiquei horrorizado e perguntei qual o endereço e o número do quarto. Anotei tudo e avisei a todos, que ia sair no dia seguinte para visitar um amigo no Hospital Bellevue.

-Amigo? Aqui em New York? Disse Paul, quem pode ser essa pessoa, que nós não conhecemos? Você precisa ver a sua cara. Você parece que vai desmaiar. Por favor, não de novo! Que tal cancelarmos tudo daqui para frente? Você se interna para se recuperar. Não vai haver problema algum. Temos um seguro para essas coisas.

-Não há nada de mal acontecendo comigo nesse momento, além dos lapsos; Charles Beckham é um cara que era meu amigo de infância em Liverpool, antes de conhecer vocês e que veio morar ainda criança, aqui em New York. Temos nos correspondido desde então. Quem está mal é ele. Eu estou muito bem, não se preocupem.

-Muito estranho! Você não é capaz de se lembrar de várias coisas, mas lembra-se muito bem desse cara e do telefone dele! Disse John. Ele deve ser muito importante mesmo. Você quer que a gente vá junto? Já imaginou o choque que ele iria ter? Foi uma das únicas vezes em que John tentou ser simpático comigo.

-Obrigado John! Vocês nem precisam ter esse trabalho, pois ele está em coma e não iria reconhecer ninguém. Vou dar apoio à sua mulher, que é minha amiga também. Vou aproveitar e farei meus exames lá mesmo.

-Georgie, meu querido! Falou Paul. Pattie não vai gostar nada disso se ela souber. Antes que você pergunte, você ainda se lembra da Pattie, sua namorada, não?

-Claro Paul, não estou tão maluco assim. E ela não vai saber não é? A não ser que tenha algum fofoqueiro! Disse isso olhando feio para todos e sem ter a menor idéia de quem era essa Pattie.

Nesse momento chegou o médico, que me fez uma série de exames superficiais e me fez uma série de perguntas para saber se eu sabia onde eu estava, quem eu era e se eu havia perdido sensibilidade em alguma parte do corpo. Depois me tirou um eletro e concluiu que o pior já havia passado. Confirmou que eu tomasse os remédios prescritos na noite anterior e se retirou.

-Gente! Pedi eu. Alguém, por favor, pode me arranjar uns óculos escuros e um boné para esconder minha cara? E preciso um cartão de crédito ou dinheiro, onde está minha carteira? Vou descer para comer alguma coisa, pois estou em jejum desde ontem e comprar os remédios.

Ao mesmo tempo eu planejava parar numa banca de jornal, para ler alguma coisa sobre os Beatles.

-Tua carteira está onde você deixou no armário e lá também você encontrará teus disfarces. Fique tranquilo Georgie, ninguém vai contar nada do que aconteceu para ninguém, disse Ringo, fazendo uma cara engraçada. Não é mesmo, rapazes? Ameaçamos o médico e a gerência do hotel de processá-los judicialmente, se alguma notícia vazar.

Ringo era o que sempre imaginei. Um cara que nos fazia rir o tempo todo. Voltei ao armário, peguei um casaco, boné, óculos escuros e a carteira de George, que estava recheada de dólares.

Desci todo encapotado, agradecendo por estarmos em pleno inverno. Estava uns cinco graus abaixo de zero e havia restos de neve e gelo pelas calçada. Eu conhecia bem a região! Antes fiz um bom lanche ali a um quarteirão, no Stage Deli, onde me atraquei com um enorme e delicioso sanduiche de Pastrami e um Cheese Cake, pois estava morto de fome.

Numa farmácia Duane Reade na Broadway com 57st., achei os remédios que eu precisava.

Numa máquina na rua, comprei uma revista Time e uma Newsweek, em que éramos a grande notícia do momento. Nelas soube dos detalhes da “minha” vida e de meus companheiros: “Meu” nome era George Harold Harrison; nunca soube que havia esse “Harold”. Soube também que George era vegetariano e tive, portanto que largar meu desejo por carne, para personificar meu novo papel. Tive uma estranha compulsão de comprar cigarros, pois eu não fumava, mas li que George fumava muito cigarros Dunhill. Comprei alguns maços e fiquei com esse hábito também, para não chamar a atenção.

Pattie, na realidade Patrícia Anne Boyd, era uma linda inglesinha loura, de olhos azuis, que “eu” tinha conhecido durante a filmagem de A Hard Day’s Night no ano passado. Li que Pattie fez uma ponta nesse filme. Ela interpretou uma das colegiais que encontravam os Beatles num trem que estava indo de Liverpool à Londres.

Tinha várias fotos de Pattie, e de outras pessoas que eu deveria conhecer, como Brian Epstein nosso diretor, George Martin nosso produtor e Eric Clapton, um bom amigo. Quando vi as fotos de Pattie, pensei:

“Pobre Flora! Não dá para comparar. Esse Geor..., quero dizer eu, tinha ganhado na Loteria. Além de estar com uma lourinha super sexy, que parecia com a Brigitte Bardot, eu estava podre de rico e poderia ter tudo o que sempre quis”.

Pelos jornais soube que as namoradas, mulheres e o resto das famílias de nosso grupo, ficaram em Londres. Os Beatles faziam uma série de apresentações nos EUA, inclusive uma entrevista na TV no Ed Sullivan Show, que tinha sido no dia 9, alguns dias antes de minha chegada e um show em Washington antes de ontem.

Tive um pouco de dificuldade para andar, pois quando eu era o Charles, pesava quase cem quilos, enquanto George mal chegava aos setenta. Eu parecia flutuar e escorregava no gelo. Havia também o efeito de ainda não estar acreditando que aquilo pudesse estar acontecendo.

Voltei para o nosso quarto, após jogar fora as revistas. Fui dormir e tive sonhos muito loucos. Algumas imagens que me surgiam neles, não eram minhas e sim de George. Isso me fez ter um palpite: A mente de George ainda estaria dormindo dentro de meu atual corpo. Isso explicaria Charles estar em coma. Seu cérebro estaria vazio. Com o tempo, acabei vendo que era um palpite certeiro.

Logo cedo, pus de novo o disfarce e saí. Cheguei ao hospital e fui direto para o quarto de Charles. Fiquei absolutamente chocado com o que vi. Ele... eu, estava na UTI, cheio de tubos, saindo pelo nariz, pela boca além de vários outros nos braços.

Flora estava lá e eu a abracei. Quando tirei os óculos e o boné, ela me reconheceu e quase desmaia! Tive de segurá-la para ela não cair.

-Não é possível!É você o amigo de Charlie? Mas ele nunca me falou que conhecia um Beatle! Posso pegar um autógrafo?

-Não só conhece como é meu melhor confidente. Sei tudo dele e ele sabia tudo a meu respeito! Dê-me um papel, que é claro eu autografo, com todo o prazer. Flora me dá uma foto de Charles. Eu escrevi: “Ao meu bom amigo Charles! 13/02/1964- George Harrison”

-Obrigada! Posso te dar um abraço? Por que ele fazia segredo dessa amizade?

-Não faço a menor idéia, Flory, posso te chamar assim? É claro que quero um abraço teu. O que aconteceu com o meu amigo?

-Que engraçado! Flory é como Charlie me chamava! Claro que você também pode me chamar assim! O Charlie estava muito bem até o dia 11, dois dias atrás e ontem não acordou mais. Depois de muitas tentativas de acordá-lo, chamei uma ambulância do Bellevue. Ainda bem que somos sócios do Hospital, senão eu não teria condição de cuidar dele. Ele adorava participar do Village Beat e às vezes ele se imaginava sendo o próprio John Lennon. Ele te contou?

-Eu sei tudo! Até mesmo que você tem uma pintinha preta no seio esquerdo.

Flora ficou vermelha e disse:

-Que danado é o Charlie, se ele sair dessa eu o mato!

-Ora, ora! Flory! Deixe disso! Ele te ama e me contou isso com o maior carinho. Dizia para mim, como tinha o hábito de beijar essa pintinha na hora H!

-Mas como? Disse Flora, chocada.

-Ele não tinha o direito de expor nossa intimidade assim! Agora eu vou matá-lo com torturas inimagináveis!

Fui tomado de dúvidas incontroláveis. Contava ou não para a Flora a verdade? Ela entenderia? Deixei para tomar essa decisão numa ocasião mais oportuna. Despedi-me dela com mais um abraço e um beijo no rosto e dei um abraço também em Charles. Lágrimas me saíram involuntariamente.

Saí do quarto, procurei o clínico e apresentando a receita fiz uma bateria de exames. Pedi para enviar o resultado para minha casa em Londres. Tive de telefonar para John no Carnegie, para saber o meu endereço. Que vergonha!

Daí a uma semana, após mais uns shows, embarcamos para Londres.

Meu tão aguardado encontro com Pattie, transcorreu melhor do que eu esperava. Nós nos encontramos na belíssima casa de George em Surrey, ao sul de Londres, que tinha sido comprada há dois anos e estava magnificamente decorada. Ela vivia lá com George, apesar de ainda não serem casados. Paul me levou no seu carro, pois eu não tinha logicamente a mais vaga idéia de onde ficava.

Fiquei abismado com o gigantesco e bem cuidado gramado da casa. Ela era tão incrível, que era conhecida por um nome e não pelo endereço. Chamava-se Kinfauns, que significa “Faunos Irmãos”, mas nunca soube o porquê! Ao chegarmos, Pattie nos aguardava no interior da casa, pois fazia muito frio. Ela estava muito preocupada pois soube de meu desmaio, da amnésia etc. Ela me abraçou e me beijou muito e imediatamente me apaixonei, pois ela era muito linda e sexy. Ela era modelo e fotógrafa. Volta e meia era chamada para sair na capa da Vogue e na Vanity Fair.

Ela me mostrou os exames. Eu os li e me pareceu tudo absolutamente normal. Eu falei que estava bem, mas que iria ao meu médico, para lhe mostrar e para, se necessário fazer mais exames. No fundo, eu tinha certeza de que nenhum exame iria descobrir coisa alguma, pois eu estava passando por algo fora do alcance da medicina.

Passamos maravilhosos momentos juntos e ela, apesar de me achar meio diferente do normal, estranhando o meu jeito estranho de beijar por exemplo. Ela apenas achou que eu andava fumando muita maconha, pois isso explicaria meu desmaio e meus lapsos de memória. Tive de me conter para não parecer demasiadamente “saudoso” de sexo, mas Pattie respondeu, com o entusiasmo de uma gata no cio, a todos os meus desejos.

Eu estava no Paraíso, mas tenho certeza de que Pattie também, pois eu como ela, era jovem, belo, rico e amoroso. Na época não se usava ainda pílulas anticoncepcionais, pois ainda era muito recente a sua invenção, e nem usávamos qualquer tipo de proteção, mas não tivemos filhos. Pattie com certeza era estéril; o futuro daria provas disso.

Seu sotaque britânico era uma delícia, e eu sentia muita falta, após tantos anos quase sem ouvir o inglês da minha terra, pois Flora e Janet eram americanas. Como eu sou também inglês, como ela, não houve estranhamento no meu modo de falar.

Ao usar o cartão de crédito de George, nunca houve dificuldades pois naquele tempo não se verificava a assinatura com atenção, mas quando precisei assinar um cheque, haveria problemas. Minha assinatura era diferente e o banco certamente recusaria. É claro, pois eu não era o George. Tive de providenciar, a alteração dela nos bancos e nos cartórios, alegando que um problema nervoso a tinha mudado. Como isso era relativamente comum, não houve problemas.

Depois de alguns meses de adaptação à nova vida, fiz para Pattie a música I Need You, em Fevereiro de 1965, que ficou marcante para mim, pois foi além de uma declaração de amor, minha primeira composição como Beatle e que entrou no LP e no filme Help!, um ano depois. A segunda foi You Like Me Too Much, que também entrou! Uma fonte misteriosa me inspirava. Nunca antes havia composto, nem escrito notas musicais e muito menos coisas com essa qualidade! Suspeitava que o verdadeiro George, não totalmente encoberto por minha mente, tentava aflorar dessa forma. Para mim era a única explicação. Mais tarde comprovei que assim o era.

Em agosto foi lançado o filme A Hard Day’s Night, no qual tive pequena participação, pois a maior parte já havia sido filmada antes de mim. Eu fiz apenas umas refilmagens de cenas, mas gravamos a trilha sonora e fizemos a sua dublagem.

A filmagem de Help, em 1965, foi uma das épocas mais divertidas de minha louquíssima vida. Durante as filmagens nas Bahamas, conheci o guru Maharishi Mahesh Yogi, que me levou à Índia no ano seguinte e onde comecei a aprender a tocar sitar. Mas as coisas boas no nosso grupo estavam para terminar, talvez devido ao cansaço.

Rodei o planeta com eles. Um dos tours marcantes foi em agosto de 1965, quando fizemos duas sessões no Hollywood Bowl em Los Angeles.

Em 1966 John conheceu a Yoko Ono e abandonou sua mulher Cynthia. Nenhum de nós entendeu a troca, pois eu achava Cynthia muito graciosa e Yoko era para nós, intragável.

A Yoko nos acompanhava a todos os lugares. Ela era muito pegajosa e insuportável. Paul e Ringo pensavam o mesmo. O grupo começava a se deteriorar. Ficava pensando se eu ou a Yoko tinha culpa. Será que meu som não caiu no gosto do público? Mas não! A crítica aplaudiu entusiasmada aos discos. O Eric Clapton, meu bom amigo na época, me ajudou muito a suportar as minhas angústias. Ele, entretanto tinha uma queda pela minha Pattie, que me deixava mais enlouquecido ainda. Ele foi um dos responsáveis, que me fizeram experimentar o LSD. A primeira vez que usei foi como uma luz se acendesse na minha cabeça. Em dez minutos eu tinha a sensação de viver mil anos. Parecia em alguns momentos que eu era um astronauta na Lua, olhando para a Terra.

Eu me arrependi muito de ter usado essa droga; a única vantagem, é que na época que usei, consegui ser amigo de John, enquanto ele também a usava, porém corri um risco absurdo, pois exacerbou a minha dualidade Charles/George, e poderia ter me enlouquecido de vez. Levei muito tempo até me reequilibrar. Acho que foi ela que provocou em Charles/George um misticismo religioso que se aprofundou muito, após 1970.

Comprei nessa época um sitar, instrumento indiano influenciado pelo Maharishi e por um amigo, Dave Crosby do The Byrds, que me apresentou ao musico indiano Ravi Shankar.

Eu e Pattie nos casamos em janeiro de 1966 e quase em seguida lançamos o disco Rubber Soul, para o qual escrevi If I Needed Someone, e Think For Yourself, apesar de John e Paul tentaram se apossar do disco e me barrar. Mas consegui impor um arranjo, o meu primeiro indiano, para Norwegian Wood, no qual usei o meu sitar. As musicas ficaram ótimas e eles foram obrigados a me engolir. Ainda em 1966, lançamos o desenho animado e a trilha sonora de Yellow Submarine, que foi um grande sucesso. Contribui com Only a Northern Song e It's All Too Much e de novo, forcei a barra, pois eram um tanto fracas e só entraram para John não fazer de novo o LP todo sozinho.

Naquele ano de 1966, John para complicar o quadro começou a partir para novas experiências e abriu em julho uma exposição de “arte” em homenagem a Yoko, em Londres. Eram uns potes de plástico de doação para caridade, camisetas escritas You Are Here, outras coisas absurdas e até uma bicicleta velha, mas como vinham de um Beatle, vendeu tudo, lotando a galeria. You Are Here (To Yoko From John Lennon, With Love), era o nome pomposo. Ele soltou naquele dia milhares de balões brancos de gás, com cartões dizendo YOU ARE HERE.

Aí veio a declaração bomba de John Lennon de que éramos mais populares do que Jesus Cristo! Sumimos da mídia várias semanas até a coisa esfriar.

Naquela época era comum gravarmos compactos e Hey Jude/Revolution, para compensar, foi um recorde de vendas. Jude, era uma homenagem de Paul para Julian Lennon, filho de Cynthia e John, que tinha esse apelido, mas muita gente associou Jude, com Judeus, Judas e Jesus, e aí a coisa pipocou de novo! Foi uma África! Porém os Beatles mandavam e o público aparentemente nos perdoou!

(continua...)

Autor:José Frajtag

E-Mail: josefrajtag@ymail.com

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