quarta-feira, 2 de novembro de 2011

CONTOS DO MUNIR 74-Parte 1

A MEGA-SENA E OS POBRES DO LEBLON
Parte 1

DULCINEIA

Seu nome é Dulcineia, 55 anos, branca, 1m40, magrinha, no máximo 30 k, enrodilhada junto à parede de um prédio da Av. Ataulfo de Paiva no Leblon, Bairro da Zona Sul do Rio de Janeiro. Ela morava só em uma favela de Santa Cruz a 60 km. Quem passa não pode deixar de notá-la, apesar de sua minúscula figura. Já faz parte do visual na calçada da padaria Rio Lisboa e do Jobi. Em frente e a direita, um copinho plástico recebe as moedinhas e, às vezes, uma nota de dois reais; a sua direita, uma garrafa de dois litros de coca-cola e um saco de padaria com seu almoço. O copo parece estar sempre vazio e ela dormindo. Na verdade, quando o copo enche, ela esconde o que foi acumulado em uma dobra de seu vestido. Seu guardião é um rapaz tatuado, antigo companheiro de trabalho do tempo em que ela era flanelinha, que corre em sua direção quando ela adormece e alguém tenta roubá-la.

.

Dulcineia chega cerca das dez horas da manhã, ela é uma pobre autônoma, não é igual a outros mendigos que vêm e voltam de van. Por volta das dez e trinta da noite, ela toma o ônibus para Central e regressa de trem para sua comunidade.

.

A moça mulata, certo dia, apareceu na área com duas crianças, pedindo esmola, um menino de cinco anos e a menina de três, usava a técnica de precisar comprar um pacote de fraldas para os meninos, depois voltava à farmácia e pedia para trocar por dinheiro. Parece que não se deu bem e, ao ver o copinho cheio de Dulcineia, aproximou-se.

.

- Será que você poderia tomar conta de meus meninos enquanto vou ali à padaria fazer xixi? – a mulata perguntou.

.

Não voltou mais. Naquele dia, Dulcineia chegou a seu barraco mais cedo, as crianças tinham adormecido. Pela manhã deu algum dinheiro para a vizinha tomar conta dos garotos e foi sozinha pro seu ponto. Dulcineia agora tomava o trem das sete da noite só para rever os meninos. Afeiçoara-se a eles.

.

Passou-se um mês, a mãe voltou dizendo querer seus filhos. O marido agora estava empregado como gari.

.

Dulcineia negava-se a ir buscá-los. Começaram a discutir. A mulata, o dobro do tamanho de Dulcineia, perdeu a paciência e partiu para a agressão.

.

Foi quando o guardião tatuado voou para cima da mulata e entrou no bolo.

.

Foram os três à Santa Cruz e Dulcineia devolveu, chorando, os meninos. O flanelinha, que na verdade estava mais para flanelão, fez a mulata prometer que traria os filhos para visitar Dulcineia no Leblon.

.

ROSANGELA

.

Aparência limpa, bem fora do peso, saia marrom, blusa branca amarelada, sapatos de salto não muito altos, bolsa grande de pano, cabelos arrumados tem seu ponto na esquina da Rua Venâncio Flores com a Avenida Ataulfo de Paiva.

.

Quando um carro para no sinal, aproxima-se bate no vidro do motorista e conta sua história em tempo cronometrado:- Vinha de longe, a pedido da patroa na casa onde trabalhava como diarista para receber seu pagamento, a dona não estava, o porteiro informou que ela tinha viajado. Não possuía dinheiro para voltar. Agradecia e cruzava a rua em direção ao ponto do ônibus.

.

Um observador paciente a veria atravessar de volta e repetir a cena. Mudava com frequência seus horários, não correndo o risco de abordar sempre os mesmos automóveis.

.

ERNESTO

.

Ernesto é de classe média, 23 anos, estudante de engenharia, mora no Leblon. Um tombo de bicicleta, fraturou o fêmur, teve que engessar, o irmão o levava na cadeira de rodas até a Praça Antero de Quental, onde ficava tomando sol com a perna esticada. Pessoas passavam e deixavam moedas no seu colo, achou aquilo a princípio divertido. Verificou em casa que a quantia arrecadada não era desprezível, no dia seguinte voltou para lá. Acostumou-se e fez ali o seu ponto.

.

Quarenta e cinco dias mais tarde, Ernesto já sem o gesso e na fisioterapia, comprou uma bota ortopédica e voltava ao seu local na cadeira de rodas. Tornou-se o dono do pedaço. Às vezes, lia Proust no original.

.

Seus pais foram buscá-lo, negava-se a abandonar seu posto para ir à terapia. Se “Maomé não vai à montanha, a montanha foi a Maomé. Era inusitado ver a cena: Ernesto com a perna esticada, de bota ortopédica e ao seu lado, sentada em um banco, a jovem psicóloga.

.

Não se sabe dizer se fora curado, fato é que desapareceu da Praça.

(Continua...)

Autor: Munir Alzuguir
E-Mail:alzumunir@gmail.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário