sexta-feira, 30 de outubro de 2009

CONTOS DO MUNIR - 15

ARPOADOR
O Arpoador muda a cada segundo, venta leste, venta sudoeste, venta nordeste, venta norte, venta sul, venta sudeste e todos os ventos da rosa dos ventos.
O mar é verde, é azul, até roxo se torna, é mansinho é bravo, é frio, é gelado é morno, pode até ter peixinhos. A praia, às vezes é praia, tem areia, outras não tem, o mar leva e sempre traz de volta.

Há não muito tempo atrás, existia no calçadão que separa a praia do Diabo, uma construção que abrigava a antiga estação de rádio desativada após a guerra

A Ponta do Arpoador, um morro de pedra que sai do mar, é inteiramente acessível. Em seu topo uma armação de concreto fixava a antena rádio, já não existe. Era o centro do círculo formado pela linha do horizonte das ilhas Tijucas, da Pedra da Gávea, do Morro Dois Irmãos, do Cristo, Pão de Açúcar e novamente a linha do horizonte. A energia aí, tão forte, se irradia em vibrações, pode-se até senti-la. Um menino de 4 anos, montado no pescoço do avô, ao contemplar dali a imensidão do oceano, exclamou: Eu sou o Rei do Mundo.
O prédio da estação pertencia aos Correios, estava fechado, era abrigo de desocupados. Foi demolido. Ordem de um subprefeito, um dentista que morava no Meyer. Até hoje rola uma ação movida pelos Correios. Graças a ele a vista ficou mais ampla. Os coqueiros já foram replantados muitas vezes, parece que agora se acertaram, têm até pencas.
A paisagem mais bonita é a do sol desaparecendo ao final da tarde no cenário da Pedra da Gávea e do morro Dois Irmãos e a seguir o crepúsculo vespertino multicolorido.

Estamos no calçadão e nos sentamos nos bancos de cimento que circundam as mesas que têm em cima um desenho de tabuleiro de xadrez. Mais tarde virão os jogadores de damas repetindo seus viciados movimentos.
Estamos de costas para o morro Dois Irmãos. À nossa frente, bem a leste, o céu aparece em brilho flamingo, é o inicio da manhã, o sol começa a nascer, anuncia um dia claro. Ficamos em silêncio, como em um ritual religioso, até que o espetáculo termine.
O velhinho pescador, quase centenário, fugiu de casa bem cedinho antes que seus filhos acordassem e, paramentado para sua pescaria, passa por nós que o cumprimentamos dizendo:- bom dia professor- e ele vai lançar seus anzóis na praia do Diabo. Mais tarde um de seus filhos virá buscá-lo e o levará de volta a contragosto. De molecagem, sempre a ele perguntamos:- quantos pegou? ele invariavelmente responde:quatro, dois fugiram e dois escaparam.
Passou-se algum tempo, o velhinho não apareceu, seu filho foi lá nos convidar para a missa de sétimo dia na capela da Reitoria. Sentimos sua falta, ele era catedrático de Filosofia na Universidade. Principiam a chegar outros madrugadores da praia quase deserta. Envolto em um roupão imaculadamente branco e calçando sandálias douradas, surge o cantor de óperas que se desnuda, sobe nas pedras e canta o Barbeiro de Sevilha alternando para Carmen ou Pagliacci. Não raro traz uma espada. O artista é aplaudido até a chegada da polícia.
Seu Trindade era português, nadava do seu jeito, um braço puxava a água e o outro mergulhado trabalhava como remo. Um dia nós o vimos afastar-se até o contorno das pedras que leva à praia do Diabo. Parecia que acenava, na verdade estava se afogando. Pena que o Zé Leite, que teve paralisia infantil (ainda não existia a vacina), não estivesse ali perto para socorrê-lo, como já fizera tantas outras vezes.
O Zé Leite tem como seqüela uma das pernas sem mobilidade. Quando menino, seus pais, a guisa de terapia, o matricularam em uma escolinha de natação. Ele vem de bicicleta de Copacabana, deixa a bengala na areia e nada do Arpoador até o Posto 9, no caminho vai salvando gente.
O Getulio vinha de Paracambi, onde morava com a ex-esposa em uma casa de dois pisos, ele no andar de cima. Ele acordava às 04:30, pegava um trem, depois um ônibus para o Leblon e caminhava até o Arpoador. Usava sempre uma camiseta vermelha, não sei se era sempre a mesma, ficava sentado no banco de madeira e tomava conta de nossa roupa quando íamos mergulhar. O Getulio sentia muitas dores nas costas e vivia tomando analgésicos, um dia deixou de vir e soubemos que tivera uma funesta hemorragia estomacal.
O Ernesto, antigo dono de restaurante, mora na Tijuca; às 06:00 já está no Arpoador, é sócio do Clube Municipal e nada lá em uma piscina de água aquecida, nunca molhou os pés na água do mar. Como aluga um apartamento para a viúva de um sargento da Marinha, se interessa e vive perguntando pelo aumento dos militares para poder reajustar o aluguel.
O Chang foi dono de uma pastelaria, mora em uma das poucas casas de Copacabana, está sempre com frio, e calado só pergunta as horas a cada dez minutos.
O Joel é dentista reformado da Aeronáutica, só vem às quartas-feiras, dia de faxina em sua casa, mora em Guaratiba, de vez em quando a faxineira troca o dia, ele também.
Essa história está ficando longa.
alzu@superig.com.br

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